E o Sertão virou um mar de obras

Dia quente, por volta da uma da tarde, numa estrada do Sertão de Pernambuco. Três homens se escondem do sol, na sombra de uma parede do que deve ter sido uma casa. Jovens, seus rostos estão longe da imagem historicamente associada ao Sertão: seca, cansaço, olhar de quem procura a esperança. Fardados com macacões amarelos, aguardam o transporte que os levará para um dos canteiros de obras do projeto de Integração de Bacias do Rio São Francisco, mais conhecido como transposição.

Aqui, uma casa custava R$ 200 o aluguel, agora está por R$ 400"
Wagner Moura, secretário de Administração de Custódia
 
"Aqui todo mundo está trabalhando. Antes era só na roça; agora é diferente", diz Valmir Dias, de 28 anos. Carpinteiro, Valmir costumava passar temporadas em São Paulo, onde trabalhava na construção civil. Há um ano e meio tem emprego perto de casa, num dos trechos de construção do Eixo Leste, no município de Custódia.

O ex-borracheiro Alex Batista dos Santos, de 21 anos, diz que o trabalho na construção civil é mais leve. Flávio Rodrigues, de 22 anos, ajudante de terraplenagem na obra da transposição, está perto de ganhar direito a férias. "A roça dá o dinheiro para sobreviver. Aqui o trabalho é mais maneiro (leve)", avalia o ex-agricultor, que estudou até o 7º ano do ensino fundamental. Flávio e Alex têm a carteira assinada pela primeira vez na vida.

Além da transposição, a construção da ferrovia Transnordestina é outro grande projeto que está ajudando a movimentar a economia da região. Juntos, os dois representam investimentos de quase R$ 10 bilhões em obras para o Nordeste. Apenas no Projeto de Integração de Bacias do São Francisco, a expectativa é de geração de 12 mil empregos diretos, durante o pico da obra.

A movimentação de pessoas e dinheiro na região tem ocasionado situações impensadas em outros tempos: filas nos caixas dos supermercados, procura por uma mesa vazia nos restaurantes, hotéis lotados, trânsito agitado. O mercado imobiliário foi um dos que mais lucraram com estas mudanças. "Como está vindo muita gente de fora, as pessoas da cidade estão reformando a própria casa ou construindo outras só para alugar. Aqui, uma casa custava R$ 200 o aluguel, agora está por R$ 400. Algumas chegam a R$ 2 mil. Por conta disso, abriram mais quatro lojas de material de construção na cidade", relata o secretário de Administração de Custódia, Wagner Moura.

Desemprego é uma palavra pouco pronunciada nas cidades envolvidas nos projetos. "Hoje, esse problema quase não existe aqui. Dentro da cidade, quem tem uma profissão está trabalhando. As empresas chegam a disputar os profissionais", atesta a secretária de Planejamento de Salgueiro, Ana Neide de Barros.

Em Floresta, pedreiros trocaram os famosos "bicos" por trabalho garantido nas construtoras responsáveis pelas obras dos canais da transposição. O empresário Teotônio da Silva Neto sentiu no bolso a escassez de profissionais. Dono de uma pequena empreiteira, ele corre contra o tempo para preencher 20 vagas de pedreiro abertas para tocar a construção de 50 casas num assentamento rural. "Estou tendoque buscar esse pessoal em Alagoas, porque aqui em Floresta não tem mais. Além disso, um serviço que antes era feito por R$ 1,8 mil agora sai por R$ 2,5 mil. Tive que aumentar o salário para segurar o empregado", conta.

A relação entre oferta e procura de mão de obra e o acesso a direitos constitucionais, como aposentadoria rural e seguridade social, têm colocado o trabalhador num patamar diferente do que tem sido reservado ao sertanejo ao longo do tempo. Mesmo sem o nível técnico e de escolaridade dos operários das grandes cidades, estas pessoas têm conseguido maior grau de autonomia em relação às suas trajetórias. "O concreto é que antes o trabalhador estava muito &aspassna mão&aspass do patrão. Ele ainda não está livre totalmente, mas essa dependência diminuiu", avalia o professor João Policarpo Lima, PHD em economia e chefe do Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco.
Negócios têm um novo fôlego

Júlio César Cruz não está empregado em nenhuma obra do governo federal, mas garante sua renda graças a esses investimentos. Morador de Salgueiro, foi beneficiado pelo efeito cascata que a execução de grandes projetos está causando na economia local. Há oito meses, inaugurou o restaurante Salgrill, na entrada da cidade. Para o microempresário, nunca o desafio de empreender pareceu tão simples. Desde que abriu o estabelecimento, trabalha com a casa cheia e as contas no azul. "Minha clientela aumenta a cada dia. O faturamento já cresceu mais de 30%", comemora. Segundo Júlio, 70% das pessoas atendidas no restaurante são trabalhadores das duas obras.

Atitudes e resultados como os de Júlio César são comuns em localidades onde há um rápido crescimento da renda da população. "Naturalmente, pequenos negócios, como mercados e restaurantes, são estimulados pelo efeito renda, quando há o aumento da massa salarial", observa o analista do Observatório Empresarial do Sebrae, João Cavalcanti.

Quem já tinha um negócio está aproveitando para ampliar a oferta. "Tem muita gente se mudando e montando a casa. É um pessoal que deve ficar um ou dois anos. Eles querem itens de primeira linha. Por isso vamos aumentar as opções da loja", André Ferreira, gerente do Armazém Nordeste, em Salgueiro.

Sem querer desanimar os empreendedores, João Cavalcanti alerta sobre a necessidade de planejar os investimentos, para não transformar em dor de cabeça o que hoje é oportunidade. "Se os negócios são movidos pelos grandes investimentos, quando as obras acabarem, eles terão dificuldade de sobreviver. O segredo é pensar agora em alternativas para redirecioná-los para a comunidade que vai permanecer no local".

Cavalcanti dá dica para um hotel inaugurado para atender a demanda gerada pelas obras no Sertão. Se a procura por leitos começar a cair, uma saída é fechar parcerias com empresas que terão filiais na cidade, com pacotes de hospedagem. "A hora de tomar essas decisões é agora, quando o bolso está bem. Depois, não se sabe se o negócio terá fôlego".
Transposição

Integração de Bacias do Rio São Francisco

O projeto

722 quilômetros de canais que transportarão água do Rio São Francisco para açudes em quatro estados do Nordeste: Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. O custo total é calculado em R$ 5 bilhões.

O projeto tem dois eixos - Leste e Norte - com 15 lotes de obras, sendo os dois mais adiantados, tocados pelo Exército. Até dezembro de 2009, o Eixo Leste estava com 41% das obras realizadas, enquanto no Eixo Norte, 24% estão concluídas.

O Eixo Norte levará água para os sertões de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. A captação será próxima à cidade de Cabrobó (PE). Já o Eixo Leste atenderá parte do Sertão e o Agreste de Pernambuco e da Paraíba, com captação da água na barragem de Itaparica, em Floresta (PE).

Bacias que receberão água do São Francisco

Brígida, Terra Nova, Pajeú, Moxotó e bacias do Agreste em Pernambuco; Jaguaribe e Metropolitanas no Ceará; Apodi e Piranhas-Açu no Rio Grande do Norte; Paraíba e Piranhas na Paraíba.

Quem se beneficia

12 milhões de pessoas serão beneficiadas com acesso à água, segundo o governo federal, mas o acesso depende da construção de adutoras por parte dos estados. No pico da obra, é estimada a geração de 12 mil empregos diretos.

Após a conclusão, espera-se a geração de 186 mil empregos rurais diretos e indiretos e 80 mil empregos urbanos diretos na área de influência do projeto, além de outros 350 mil nas regiões parcialmente beneficiárias por futuras transposições.

Revitalização

Em paralelo à transposição, o Governo está fazendo a "revitalização" do Rio São Francisco, incluindo ações de esgotamento sanitário e controle de erosão das margens do rios e seus afluentes. Até dezembro de 2009, relatório do Ministério da Integração apontava a conclusão de 45% das obras.

Prazos

O Eixo Leste estava previsto para ser concluído até dezembro de 2010 e Eixo Norte até o fim de 2012. Os prazos não devem ser cumpridos. Na verdade, para implementar todo o projeto, incluindo as adutoras necessárias para levar água às populações, são necessários cerca de 20 anos.

Críticas

Os impactos ambientais da obra e dúvidas sobre o acesso das populações à água que será desviada são as principais questões. O custo elevado do projeto de transposição e o histórico de insucesso de outras iniciativas deste tipo no mundo também são argumentos de quem se posiciona contra.
Vizinhos do progresso
Mudança // Casal acompanha transposição da janela da casa nova, construída pelo consórcio

Da janela de casa, dona Maria e seu Severino acompanham o movimento de caminhões e tratores 24 horas por dia. Desde que a obra da transposição chegou ao Sítio Malhadinha, no município de Custódia, dona Maria Marques de Amorim vê o canal por onde passará a água do São Francisco ganhar forma como numa novela. A antiga casa não existe mais. Deu lugar ao canal - ainda um buraco de concreto, à espera da água.

Na casa nova, vizinha ao canteiro de obras e construída pelo consórcio responsável pela transposição, ela e o marido tocam a vida, sem muita mudança na rotina. No quintal, cabras e bezerros, 12 perus, muitas galinhas, água da cisterna e Leão, o cachorro que aproveita a sombra do início da tarde para tirar um cochilo. As vacas (Roxinha, Boneca e Morena) ficaram do outro lado e precisam ser visitadas de vez em quando.

"Eu fico aqui de noite, olhando o movimento pela janela. Tudo iluminado, mais de 50 caminhões de um lado pra outro. É bonito de ver, parece uma cidade. Quando dá meia-noite, vou me deitar, mas ainda fica o barulho até umas quatro da manhã. Ele (o marido) consegue dormir", conta, enquanto oferece água e doces para quem chegou sem avisar.

Aos 75 anos, Severino da Costa Amorim não ouve tão bem. Diz que está com problema "nas oiças" e pede para falarmos mais alto. Lembra da primeira viagem a São Paulo. "Na primeira a viagem durou 14 dias. Fui nove vezes, pra trabalhar como ajudante de pedreiro. Depois fui pra Brasília. Passei dois anos. Também trabalhei no Mato Grosso e no Paraná".

A primeira casa foi construída com o dinheiro economizado quando moraram em Foz do Iguaçu, no Paraná. Enquanto seu Severino trabalhava na construção da Usina de Itaipu, dona Maria arrumou emprego de arrumadeira. Em 11 meses, juntaram o dinheiro para levantar as paredes e voltaram.

Com a experiência de quem já trabalhou muito na vida, dona Maria conta que eles ainda não receberam a indenização pelas terras e diz que vai economizar o pagamento pelos 11 hectares desapropriados. "A gente não sabe o dia de amanhã. Hoje, a gente ganha aposentadoria, mas eu já carreguei muita terra na cabeça. Na primeira vez que trabalhei em escavação de barragem, ganhava 15 cruzeiros por mês pra carregar 70 latas de terra por dia, três vezes por semana", lembra a agricultora de 65 anos, que ajudou a construir a última barragem em 1996. Pelo serviço (as mesmas 70 latas de terra carregadas por dia), recebia R$ 60 por mês.

Se a água da transposição vai chegar na casa deles? "Não sei. A gente espera que chegue, né? Mas não tem como dizer. A vida está melhor agora, o pessoal da obra é bom. Espero que a vida fique ainda melhor", fala. Na despedida, com a atenção de quem vive no Interior, diz porque acolhe com carinho quem vem de fora: "Tenho muito parente no mundo. Só quem tá no mundo sabe o que é saudade de casa".

Caminhos das águas indefinidos

O fato de dona Maria e seu Severino estarem perto do que promete ser a redenção do sertanejo, não garante acesso à água. "Ninguém sabe como será", conta o secretário de Administração de Custódia, Wagner Moura. Em Cabrobó, onde nasce o Eixo Norte, a prefeitura planeja incrementar a agricultura irrigada. "A proposta é incorporar 15 mil hectares irrigados com a perenização do riacho Terra Nova", vislumbra o prefeito Eudes Caldas. Em Salgueiro, o otimismo é maior. "É a água entrar nos canais que vamos acabar com a seca", diz Ana Neide de Barros, secretária de Planejamento.

Nem todos os planos devem ter vazão nesse projeto. "Vai ter acesso quem tiver capital", aposta o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, João Suassuna, crítico da transposição. Ele pontua que, como cabe aos governos estaduais e municipais a criação da infraestrutura de distribuição, o projeto deve esbarrar na falta de dinheiro.

O secretário de Recursos Hídricos de Pernambuco, João Bosco de Almeida, reconhece a existência de pendências, como definir um modelo de gestão e criar um regulamento para a cobrança do uso da água. Segundo João Bosco, as questões serão solucionadas até o fim do ano, com a criação de um órgão ligado ao Ministério da Integração, que vai operar o sistema.

Os estados, por sua vez, devem instituir agências de gestão. "Vamos implantar os sistemas e o que não for estudado pelo governo federal, será visto por nós. Por enquanto, a finalidade é o consumo humano e animal, mas sabemos que a dinâmica será diferente e outras demandas vão surgir", explica.
 
Há garantia de futuro próspero?

O cenário de emprego e melhoria de renda não garante a certeza de um futuro próspero. Mesmo reconhecendo que há mais oportunidades, existe dúvida sobre a perenidade das mudanças. "Falaram que a obra vai terminar em 2011, mas acho que demora mais, por causa da dificuldade do terreno. Quando estiver pronta, vai surgir emprego para quem plantar. Mas o pobre vai continuar pobre. Pode ganhar mais, mas continua pobre", diz o carpinteiro Valmir Dias.

O pensamento é acompanhado pelo secretário de Administração de Custódia, Wagner Moura, para quem o município não tem como absorver essa mão de obra. A esperança seria redirecionar essas pessoas para a agricultura familiar. "Mas isso vai depender da vinda da água", observa.

Em Salgueiro, o sentimento é inverso. Privilegiado pela posição geográfica, no centro do Nordeste, o município deve se consolidar como polo logístico. "Recebemos visitas sistemáticas de empresários que vêm conhecer a cidade e querem investir na área de logística. Com a Transnordestina, isso vai aumentar. O desenvolvimento é um caminho sem volta para Salgueiro", diz a secretária de Planejamento, Ana Neide de Barros.

Para o economista João Policarpo Lima, da UFPE, as duas visões estão corretas. "A Transnordestina poderá gerar outras oportunidades econômicas e um efeito mais permanente. Já o efeito da transposição acontece enquanto durar a obra. O depois vai depender de políticas públicas e do acesso à água. Os empregos serão gerados para onde a água chegar".
Ferrovia Transnordestina

A Transnordestina Logística ligará o município de Eliseu Martins (PI) aos portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco, seguindo até Porto Real do Colégio, no estado de Alagoas, onde se interligará à Ferrovia Centro-Atlântica.

Extensão

1.728 km de construção e 550 km de remodelação, totalizando 2.278 km

Investimento previsto

R$ 5,42 bilhões, sendo R$ 4,5 bilhões entre 2007-2010 e o R$ 0,97 bilhão restante, após 2010

Empregos

É esperada a geração de 550 mil empregos com a obra; destes, seriam 70 mil postos de trabalho diretos

Trechos previstos

Missão Velha (CE) / Salgueiro (PE) - construção

Extensão: 96 km Bitola: mista
Situação: Iniciado em junho de 2006. Realizados 96% da infraestrutura e 35% de arte especial. Previsão de conclusão da infraestrutura e de 50% de arte especial até 30 de abril de 2010.

Salgueiro (PE) / Trindade (PE) - construção

Extensão: 163 km Bitola: larga e mista
Situação: Iniciado em 2009, o trecho tinha 15% da infraestrutura realizada em 08 de janeiro de 2010. A meta é concluir outros 15% até 30 de abril de 2010.

Salgueiro (PE) / Suape (PE) - construção

Extensão: 522 km Bitola: larga
Situação: Obras iniciadas nos lotes 3 e 4, em 18 de janeiro de 2010. Desapropriados 196 Km . A meta é iniciar todos os demais lotes (1, 2, 5, 6 e 7) este ano.

Pecém (CE) / Missão Velha (CE) - construção e remodelagem

Extensão: 527 km Botola: mista
Situação: LI emitida em 08 de dezembro de 2009; 202 Km de laudos ajuizados e 54 Km desapropriados.

Trindade (PE) / Eliseu Martins (PI) - construção

Extensão: 420 km Bitola: larga
Situação: iniciada a execução de 32% da infraestrutura. Meta de concluir 10% da infraestrutura até 30 de abril de 2010.

Cabo de Santo Agostinho (PE) / Porto Real do Colégio (AL) - recuperação

Extensão: 550 km Bitola: larga/mista
Situação: Recuperação do trecho destruído pelas enchentes em 2000. 90% da superestrutura concluídos. Meta de conclusão até abril deste ano.

Em operação, a Transnordestina Logística terá:

110 locomotivas (em 2020)
2.700 vagões (em 2020)
900 mil toneladas de capacidade estática de armazenagem para grãos nos terminais portuários de Suape e Pecém

Principais cargas:

álcool, algodão (caroço e pluma), argila, arroz, biodiesel, cal, cimento, contêineres, diesel, farelo de soja, fertilizantes, gasolina, gesso, gipsita, milho, óleo de soja, soja, minério de ferro

Fontes: Balanço de 3 anos do PAC, Ministério da Integração Nacional e Transnordestina Logística S.A.