Festa da indústria naval em Suape

Pernambuco levantou âncora e deu partida para a retomada da indústria naval no Brasil, ontem, com o lançamento ao mar do primeiro navio do Programa de Modernização e Expansão da Frota da Transpetro (Promef). Sob o olhar de 6,2 mil espectadores, o petroleiro foi batizado e ganhou o mar de Suape, numa longa cerimônia, marcada por muitos discursos e pela participação efusiva dos 3,7 mil funcionários do Estaleiro Atlântico Sul (EAS). O segundo navio do programa será entregue no dia 10 de junho, no Estaleiro Mauá (RJ) e terá o nome do economista paraibano Celso Furtado.

O João Cândido é o primeiro petroleiro da encomenda de 49 navios feita pela Transpetro a estaleiros nacionais. “Construir este navio era tido, por alguns especialistas do outro lado, como impossível”, destacou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu discurso. Foi dele a decisão de voltar a construir embarcações no País. Ele afirmou, ainda, que a construção precisava ser levada a sério não só pela geração de empregos, mas pela autoafirmação de um povo. “É a autoafirmação de um povo que, durante muito tempo, foi esquecido. O Nordeste brasileiro só aparecia nas estatísticas como campeão de mortalidade infantil, campeão de analfabetismo, campeão não sei das quantas”, completou.

O esforço dos operários foi ressaltado durante toda a cerimônia. A Transpetro produziu um vídeo institucional com depoimentos de vários operários, que foi assistido atentamente pelas autoridades e fez o presidente Lula se emocionar. O VT trouxe histórias de homens e mulheres que contribuíram para colocar Pernambuco (sem tradição no setor) no mapa da indústria naval do País. A exaltação aos trabalhadores também foi tema do poema recitado pelo cordelista pernambucano J.Borges, que no final da apresentação entregou um cordel ao presidente Lula. Durante a solenidade, os operários traziam no peito um adesivo com a inscrição “Eu construí o 1º navio do PAC”.

Muito aplaudido, o presidente do EAS Angelo Bellelis fez questão de agradecer aos seus funcionários “arretados” e prometeu a entrega do segundo navio até o final do ano. Depois do lançamento ao mar, o João Cândido passará mais três meses no cais de acabamento para finalizar a construção, antes de ser entregue à Transpetro, em agosto. O presidente Lula disse que gostaria de ser convidado para a primeira viagem da embarcação, que deverá acontecer no dia 15 de setembro.

A soldadora Josenilda Maria da Silva, de 32 anos, representou os trabalhadores e assumiu o posto de madrinha da embarcação. Na solenidade, desejou felicidades ao navio e à tripulação e comandou o ritual da quebra do champanhe no costado da embarcação. “Foi uma emoção grande estar ao lado do presidente Lula batizando o navio que ajudei a construir”, disse.

Nos discursos, o presidente Lula foi várias vezes citado pela decisão “corajosa” de voltar a construir navios no Brasil. O presidente da Transpetro, Sérgio Machado, chegou a compará-lo com dois importantes protagonistas do setor ao longo da história: o Barão de Mauá, que comandou o primeiro estaleiro de grande porte do Brasil e o presidente Juscelino Kubitschek, que no seu mandato criou o Grupo Executivo da Indústria de Construção Naval (Geicon) para alavancar o setor.

Meta agora é encurtar o tempo de produção

Passada a festa e a euforia do lançamento ao mar do primeiro navio construído em Pernambuco, o próximo desafio do Estaleiro Atlântico Sul (EAS) será investir em eficiência. A partir de agora é preciso encurtar o tempo de produção e o custo dos petroleiros. O João Cândido teve preço 51,6% superior ao valor médio previsto para as dez primeiras embarcações do Programa de Modernização e Expansão da Frota da Transpetro (Promef). Segundo o presidente do EAS, Angelo Bellelis, o navio custou US$ 182 milhões, enquanto o valor estimado era de US$ 120 milhões.

Para conquistar essa eficiência, uma das primeiras medidas será diminuir o número de horas trabalhadas na fabricação dos navios. O estaleiro padece da dificuldade de ter uma mão de obra com pouca experiência, estreante no setor. Dos 3,7 mil funcionários, a maioria não tem histórico no setor industrial. Donas de casa, cortadores de cana, garçons e comerciantes foram capacitados para se transformar em trabalhadores da construção naval. “Também precisamos levar em conta que construímos o estaleiro e o primeiro navio ao mesmo tempo. A medida que erguíamos os galpões, começávamos a cortar as chapas de aço”, recorda Bellelis. Na solenidade, o executivo disse ao presidente Lula que o segundo navio será entregue até o final do ano e que ele poderá participar de outra cerimônia de batismo e lançamento ao mar.

Bellelis destacou que parte do atraso na construção do João Cândido foi resultado de problemas na compra dos Goliaths (guindastes gigantes que movimentam grandes blocos do navio para dentro do dique seco). Em 2008, os equipamentos foram encomendados à empresa chinesa Wuxi, que faliu e não honrou o compromisso. “Precisamos contratar a companhia coreana WIA para entregar os Goliaths, o que provocou um atraso de oito meses no cronograma”, revela.

Sem os megaguindastes, o EAS teve que montar o navio colocando pequenos pedaços dentro do dique seco, sendo necessário erguer 214 blocos. Para a segunda embarcação a expectativa é que o número de blocos caia para 58 e no futuro para 11. Isso vai garantir velocidade à construção. Com previsão de ser entregue à Transpetro em agosto deste ano, o João Cândido vai totalizar um tempo de produção de quase 2 anos. Para se ter uma ideia, na Coreia do Sul a montagem é concluída em até 8 meses. O segundo navio deverá ser entregue no final deste ano. Para 2011 e 2012 serão quatro a cada ano. A ideia é que o tempo médio de construção de cada embarcações caia para 18 meses.

O homem que resistiu à chibata
 
No ano que marca o centenário da Revolta da Chibata, o presidente Lula decidiu homenagear o líder do levante, João Cândido, dando seu nome ao primeiro navio construído no Brasil, após um jejum de 13 anos. A homenagem foi acompanhada pelo filho do Almirante Negro, Adalberto Cândido, Candinho, 71 anos, que assistiu à cerimônia e participou do batismo, mas não foi convidado a discursar.
“Eu tomei a decisão de colocar o nome neste navio de João Cândido porque um país não pode ter meia história. E a gente goste ou não goste, João Cândido é um personagem da história brasileira que mostrou que os brancos que chefiavam a Marinha naquele tempo, não estavam respeitando sequer a legislação brasileira, que já tinha acabado com as chibatadas que os negros tomavam”, discursou o presidente Lula.

Apesar da boa intenção, Lula cometeu um equívoco ao tentar contar a história, dizendo que João Cândido teria levado 250 chibatadas. “Papai nunca levou chibatadas, mas decidiu comandar o motim em defesa dos companheiros que vinham sofrendo esse tipo de castigo”, conta Candinho. Pelos registros históricos, o marinheiro que sofreu as 250 chibatas aos olhos da tripulação foi Marcelino Rodrigues Menezes. Ele foi condenado a 25 chicotadas, mas acabou recebendo dez vezes mais. Mesmo depois de desmaiar, continuou a ser agredido no convés do navio Minas Gerais. Isso aconteceu no dia 16 de novembro de 1910, no Rio de Janeiro, mas o movimento só foi deflagrado seis dias depois (22/11).

Para castigar os marinheiros, os oficiais brancos usavam uma corda de linho atravessada com pequenas agulhas de aço. Depois colocavam de molho para que ela inchasse e só ficasse aparecendo as pontas das agulhas. Revoltados, os marinheiros tentaram por duas vezes realizar o levante, mas ele só aconteceu na terceira tentativa. O saldo do motim foram cinco oficiais mortos. A represália veio em seguida, com a prisão de João Cândido e outros 17 marinheiros que participaram da revolta. Eles foram jogados numa masmorra e passaram a noite agonizando até a morte. Na manhã seguinte, abriram o portão e só restavam vivos João Cândido e outro marinheiro.

“Fiquei emocionado de ver um navio daquele tamanho e dessa importância para o Brasil com o nome do meu pai. Foi justa a homenagem a um homem que amava o mar e viveu dele mesmo depois de deixar a Marinha”, diz Candinho.

Em 2008, depois de um projeto apresentado pela senadora Marina Silva (PV-AC), os marinheiros da Revolta da Chibata foram anistiados, mas não tiveram direito a receber indenização, a exemplo dos presos políticos da Ditadura Militar. Expulso da Marinha, em 1912, João Cândido morreu pobre, aos 89 anos, em 1969, tendo passado a maior parte da vida vendendo peixe na Praça XV (RJ). No local foi erguido um monumento em sua homenagem. No Rio Grande do Sul, sua terra natal, também tem um busto dele.